Nova esperança para doença neurodegenerativa
Uma equipa portuguesa do
Centro de Neurociências da Universidade de Coimbra foi capaz de parar a
degeneração cerebral em ratos, através do bloqueio de uma molécula denominada
calpaína.
Os
investigadores estão um passo mais próximos de descobrir um tratamento para a
Doença de Machado-Joseph (DMJ), uma doença neurodegenerativa fatal, após uma
equipa portuguesa do Centro de Neurociências da Universidade de Coimbra ter
sido capaz de parar a degeneração cerebral em ratos, através do bloqueio de uma
molécula denominada calpaína. A calpaína é conhecida por cortar a ataxina-3 (a
proteína mutante por detrás da DMJ) em fragmentos, e o estudo, que vai ser
publicado no jornal Brain (Cérebro), prova que estes fragmentos são cruciais
para acionar a neurodegeneração.
Se este trabalho poder ser
repetido em pacientes humanos – e os resultados preliminares do estudo assim o
sugerem –, os medicamentos que bloqueiam a calpaína podem tornar-se o primeiro
tratamento capazes de travarem a DMJ. Luís Pereira de Almeida – o líder da
equipa de investigação – acrescenta “e mesmo que não consigamos prevenir com
totalidade a clivagem da ataxina-3, dado que esta é uma doença que se revela
mais tarde, reduzir a sua velocidade pode ser o suficiente para travá-la de
aparecer durante o tempo de vida dos pacientes, o que seria uma vitória
incrível numa doença terrível”.
E de facto, a DMJ (também
chamada de ataxia espinocerebelar tipo 3 ou SCA3) é terrível – uma doença
neurodegenerativa que causa ataxia (uma incapacidade de controlar os movimentos
do corpo), confinando os pacientes a cadeiras de rodas e a uma dependência
total, a doença é fatal e não tem tratamento. E apesar de rara, há locais onde
a sua incidência é mais elevada – como a ilha portuguesa açoriana das Flores –,
podendo atingir cerca de 1 em cada 140 indivíduos. Isto, juntamente com o facto
de a severidade da doença tender a aumentar à medida que é transmitida de uma
geração para a próxima, e que é transmitida a metade de todas as crianças com
progenitores afetados, torna a descoberta de um tratamento seriamente urgente.
Também sabemos que a DMJ é
causada por uma parte aberrante de ADN que se multiplica dentro do gene MJD1
(quanto mais longa é a parte, pior é a doença), produzindo a proteína mutante
ataxina-3, proteína que agrega a formação de depósitos nas áreas do cérebro
afetadas pela doença. O que não sabemos é o que leva à neurodegeneração,
tornando mais difícil desenvolver tratamentos capazes de travar o processo.
No estudo agora publicado,
Ana Simões (a primeira autora do trabalho), Pereira de Almeida e colegas
observaram novas terapias, através de outro mistério da DMJ – a razão porque a
ataxina-3 normal “vive” fora dos núcleos celulares, enquanto os depósitos da
sua forma mutada são encontrados dentro (apesar de a proteína mutante ser maior
e, supostamente, haver maior dificuldade em atravessar o núcleo). É normal
pensar que se se descobrisse porque isto acontece, podia ser travado,
interferindo com a doença.
E isto é onde os fragmentos
de ataxina-3 entram – a “hipótese fragmentária tóxica” é uma teoria que afirma
que algumas doenças neurodegenerativas são acionadas através da produção de
fragmentos tóxicos a partir da proteína mutada por detrás da doença. A doença
de Alzheimer tem sido ligada a isso, por exemplo e, mais recentemente, também a
DMJ. De facto, recentemente foi demonstrado que a ataxina-3 mutante, quebrada
pela calpaína, produz fragmentos tóxicos que são capazes não só de escapar aos
mecanismos celulares de controlo de qualidade, como também de acionar a
agregação da ataxina-3 (que vai levar aos depósitos cerebrais). E se a DMJ é
acionada pelos fragmentos tóxicos produzidos pela calpaína, isso explicaria como
é que os depósitos anormais chegam aos núcleos (já que são os fragmentos, e não
a proteína, a entrar) e também, finalmente, dar-nos-ia uma forma de travar a
DMJ (através do bloqueio da calpaína).
Então, poderia a calpaína
ser a chave para a neurodegeneração da DMJ, assim como o seu tratamento? No
trabalho agora publicado, o grupo de Pereira de Almeida investiga a
possibilidade com a ajuda do único inibidor da calpaína conhecido no corpo, uma
molécula chamada calpastatina (ou CAST). A ideia é a de que se a calpaína é
importante para a DMJ, a CAST será capaz de travá-la.
Através da utilização de
ratos com níveis diferentes de CAST no cérebro, assim como a ataxina-3 mutante,
os investigadores descobriram que pondo grandes quantidades de CAST nos
cérebros dos ratos com DMJ, reduz os depósitos anormais de proteínas, assim
como a neurodegeneração e a disfunção neural típica da doença. Estes animais
tratados com CAST também tinham uma atividade calpaínica mais baixa (quando
comparados com os ratos “normais” com DMJ), provando que o CAST estava a afetar
a calpaína. A hipótese de que o CAST estava a agir através da travagem da
formação de fragmentos tóxicos foi ainda confirmada quando fragmentos da
proteína mutante foram encontrados, em grandes quantidades, em animais doentes,
mas em quantidades muito reduzidas nos animais tratados com níveis elevados de
CAST.
De forma interessante,
Simões e os colegas também descobriram que o CAST parecia que tinha um papel na
doença propriamente dita – havia muito menos CAST no cérebro dos ratos doentes
de que nos saudáveis, e quando os níveis da ataxina-3 mutante aumentavam no
cérebro dos ratos com DMJ, o CAST desaparecia (aparentemente apagado pela
proteína mutante?).
Pela primeira vez em
sujeitos vivos (no caso, ratos), estes resultados demonstram uma ligação entre
a quebra da ataxina-3 mutante, a formação de depósitos anormais de proteínas e
os danos neurais que provocam a DMJ. Também provam que os fragmentos tóxicos
são cruciais para acionar a destruição cerebral. Como Pereira explica “é como
se a ataxina-3 ficasse ‘cravada’ pela calpaína, com estes fragmentos ‘armados’
forçando o acesso aos centros de controlo celular, onde bloqueiam as mais
diversas funções e causam a morte celular. Porque são pequenos, têm mais
capacidade de entrar no núcleo celular para provocar danos”. Os resultados também
abrem as portas a investigações similares sobre outras doenças
neurodegenerativas com a “ligação do fragmento tóxico”.
Mas o mais importante de
tudo, é facto deste novo trabalho revelar que o CAST pode travar a
neurodegeneração da DMJ.
A questão que agora se
levanta, é se pode ser repetido em humanos? E na verdade algumas experiências
preliminares, mas muito promissoras, levadas a cabo pela equipa de Pereira de
Almeida, mostram que os níveis de CAST são mais baixos que o normal no cérebro
dos pacientes com DMJ, sugerindo um mecanismo da doença similar nos humanos e
nos ratos (e assim também um efeito terapêutico similar do CAST), o que são
grandes notícias não só para os cientistas envolvidos, mas especialmente para
todas as famílias afetadas. E o grupo já está a testar medicação via oral capaz
de bloquear a calpaína, apesar de por agora, só em animais.
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