Uma nova terapia genética melhorada pode ser o primeiro tratamento para a doença de Machado-Joseph
Autor original do artigo:
Sandro Alves e Almeida
Investigadores portugueses,
suíços e franceses mostram, pela primeira vez, que é possível inibir, num
organismo vivo, as cópias mutadas dum gene sem afetar a cópia normal existente
do mesmo gene. A investigação descreve como os cientistas usaram com sucesso a
terapia em ratos para reverter os sintomas da doença de Machado Joseph (DMJ),
uma doença neurodegenerativa incurável e potencialmente fatal. Se estes
resultados podem ser transferidos para os seres humanos - e mostram que o
método funciona em células humanas isoladas - não só pode tornar-se o primeiro
tratamento disponível para a doença de Machado Joseph, mas também abre as
portas para uma nova terapia genética mais segura e eficiente para outras
doenças neurodegenerativas, tais como doença de Parkinson ou doença de
Alzheimer.
Este artigo é o resultado de
um projeto de divulgação da ciência portuguesa, http://www.cienciahoje.pt/1455.
A doença de Machado Joseph
(DMJ) (ou ataxia espinocerebelosa tipo 3 – SCA3) é uma doença neurodegenerativa
causada pela repetição anormal de uma série de três nucleótidos – os nucleótidos
são os blocos que formam o ADN - no gene da DMJ, o qual produz a proteína do
cérebro ataxina-3. A proteína mutada, incapaz de funcionar normalmente,
acumula-se em depósitos insolúveis no cérebro do paciente, promovendo a lesão
neuronal associada à DMJ que se caracteriza por uma elevada incoordenação
motora progressiva e falta de controlo motor, o que conduz a um confinamento em
cadeira de rodas e, em casos extremos, à morte. A doença é incurável.
Sandro Alves, Luís Pereira de
Almeida, Nicole Deglon e colegas do Centro de Neurociências e Biologia Celular
e Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, Portugal e o Instituto de
Imagem Molecular e Centro de Investigação de Imagem Molecular, em Orsay, França
têm-se interessado, há muito tempo, por doenças neurodegenerativas,
especialmente a SCA3, e a investigação publicada explora uma nova ferramenta
chamada interferência de ARN (ARNi) para tentar e silenciar o MJD1 mutado e controlar
os danos neuronais associados com a doença.
O método baseia-se no facto
de, durante a expressão do gene, a informação contida no ADN é transferida para
as moléculas de ARN mensageiro (ARNm) que depois instruem outras moléculas para
produzir uma proteína. O método do ARNi introduz, nas células que expressam o
gene que queremos silenciar, uma molécula de ARNi complementar ao ARNm do gene,
e as duas moléculas são unidas. Porque duas moléculas de ARN não ocorrem naturalmente,
esta dupla de ARN será rapidamente eliminada, parando a expressão do gene a
meio do caminho (daí o nome "ARN de interferência").
O que é novo e
particularmente interessante no trabalho de Alves, Almeida, Deglon e colegas é
que eles usam um ARNi que visa especificamente a versão mutada do gene da
ataxina-3, sem tocar em nenhum MJD1 normal existente nas células. Na verdade,
há sempre duas cópias de qualquer gene em qualquer célula, o que significa que
a maior parte do tempo que os pacientes com DMJ - porque um MJD1 mutado é
suficiente para produzir a doença – têm uma cópia funcional que produz a ataxina-3.
Este novo ARNi se dirige a uma
pequena região no ARNm do MJD1, sendo diferente entre as versões normais e
mutadas do gene. Assim, acredita-se que a ataxina-3 participa na destruição das
proteínas anormais e potencialmente tóxicas no cérebro, exatamente os mesmos
que podem levar a doenças neurodegenerativas, é importante proteger a produção
desta proteína que poderia ainda existir.
Com esta nova ARNi nas mãos,
os investigadores começaram por avaliar a sua eficácia em células embrionárias
humanas isoladas a partir do rim, onde foi mostrado que esta eliminava o ARNm
do MJD1 mutado, levando tanto como a uma redução de 70% nos níveis da ataxina-3
anormal.
De seguida, o ARNi foi usado
num modelo de rato com DMJ desenvolvido pelos investigadores e onde a doença
foi criada através da injeção dum vírus que contém um gene humano MJD1 mutado
no cérebro dos animais.
Assim, as células do cérebro
do animal foram infetadas - e uma vez que estes vírus infetam inserido no
cromossoma do hospedeiro, neste caso ter também o MJD1 mutado -, produzem
ataxina-3 mutada e, assim, criam uma doença como a DMJ. Nesta nova experiência,
os animais foram injetados não só com o vírus contendo o MJD1 humano mutado,
mas também com uma molécula contendo o ARNi e esta pode interferir com a
produção da ataxina-3 anormal das células do cérebro.
E, de fato, três semanas
após as injeções, a análise ao cérebro dos ratos revelaram uma redução
substancial do número e tamanho (anormal) dos depósitos da proteína (redução de
50%) e lesão neuronal (redução de 70%) em comparação com os controlos,
demonstrando a capacidade deste protocolo de controlo da DMJ em organismos vivos.
Embora este ARNi ter sido mostrado antes para silenciar o MJD1 mutado em
células isoladas, Alves e colegas obtêm a libertação dentro do cérebro de
organismos conseguindo, pela primeira vez, uma terapia genética de uma mutação
específica em animais vivos.
Precisa-se de fazer mais
investigação para garantir a segurança do método e os resultados a longo prazo,
antes de poder ser utilizado em seres humanos, mas o facto de ser possível
silenciar a produção de ataxina-3 mutada no cérebro de ratos é muito promissora.
Além disso, tanto o tratamento de animais vivos como o tratamento de células
humanas isoladas, aparentemente não mostraram efeitos secundários, uma
importante característica para o uso em humanos. Uma das maiores preocupações
de tais métodos é a introdução de um vírus no corpo, embora seja inofensivo
quando injetado, tem sempre o potencial (remoto) para se tornar uma forma de
induzir a doença, ou - como aconteceu atrás alguns anos num ensaio clínico de
terapia genética - ativar genes cancerígenos. No entanto, um sistema viral
semelhante ao utilizado por Alves e colaboradores é agora utilizado num ensaio
clínico de terapia genética para a doença de Parkinson sem efeitos colaterais,
o que proporciona maior apoio para a relevância dos resultados descritos aqui
para eventuais tratamentos humanos.
E de fato Luís Pereira de
Almeida, um dos autores, diz que "o próximo passo imediato é usar um
modelo de rato transgénico em que o animal expressa na maioria das células
cerebrais a ataxina-3 mutada, situação muito mais perto do que acontece nos
pacientes, para validar o alcance do silenciamento e prever melhor o resultado
dum tratamento clínico dentro duma região específica do cérebro. Se esses
estudos forem bem-sucedidos, depois temos de tentar atrair o interesse de
empresas farmacêuticas que trabalham nesta área para levar a terapia para
ensaios clínicos.”
Finalmente, a investigação
tem uma outra implicação. Apesar de tudo, esta é a primeira vez que é possível
silenciar a produção de uma proteína mutada, sem afetar qualquer versão normal
da mesma proteína no cérebro de animais vivos. Com o aumento da utilização da
terapia genética que agora se tem visto, particularmente a ARNi no tratamento
de doenças neurodegenerativas, a qual é capaz de salvar a produção da proteína
normal, o que é uma das suas principais vantagens, especialmente num órgão como
o cérebro. Alves, Almeida, Deglon e colegas mostraram como isso é uma possível
porta para uma terapia genética de ARNi mais segura e mais específica.
A DMJ foi detetada pela
primeira vez em descendentes de portugueses/açorianos em 1970 (Machado e Joseph
são os nomes das duas primeiras famílias portuguesas afetadas identificadas),
mas agora é muito difundida em todo o mundo onde é a ataxia hereditária
autossómica dominante mais comum (doença neurodegenerativa caracterizada por uma
grande descoordenação). No entanto, a ilha açoriana das Flores é ainda o lugar
com a mais alta incidência da doença, onde cerca de 1 em cada 140 pessoas é afetada.
Os sintomas incluem o aumento da fraqueza muscular (ataxia significa
incoordenação motora) e uma descoordenação, fala arrastada e uma perda
progressiva do controlo motor que, eventualmente, confina o paciente a uma
cadeira de rodas e, em muitos casos mais graves, leva a uma morte prematura.
(artigo traduzido)
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