Não estou bêbado, tenho ataxia.

Rotnes WGV, Orsini M, Bastos VH, Freitas MRG, Nascimento O, Mello MP, Eigenheer JF, Reis CHM.

A Doença de Machado-Joseph (DMJ) é considerada uma doença hereditária progressiva, categorizada como uma ataxia cerebelar autossômica dominante (ACAD). As ACAD têm em comum, basicamente, as manifestações de ataxia progressiva, deterioração no equilíbrio, na coordenação e distúrbios oculares. Este trabalho tem como objetivo propor uma estratégia fisioterapêutica específica, utilizando os movimentos oculares, para a ataxia cerebelarde indivíduos com DMJ. A reintegração e funcionalização de determinadas áreas do tronco cerebral e cerebelo através da utilização dos movimentos oculares parece ser uma estratégia que pode apresentar resultados significativos de melhora funcional ou de amenizar a progressão da doença nesses indivíduos.revisão

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INTRODUÇÃO
A Doença de Machado-Joseph (DMJ), também conhecida como ataxia espinocerebelar 3 – SCA3, atrofia espinocerebelar III, doença neurológicaaçoreana, atrofia espinopontina e degeneração nigroespinodenteada, é considerada uma doença hereditária progressiva, categorizada como uma ataxia cerebelar autossômica dominante (ACAD).
Atualmente, há uma tendência em utilizar-se a denominação Ataxia Espinocerebelar 3 (SCA3) para referir-se a DMJ pela primeira vez em imigrantes portugueses em Massachusetts, que eram descendentes de William Machado, oriundo das ilhas dos Açores, novos registros surgiram ligados a famílias de outras origens étnicas em vários países genéticas, como a ocorrência de um efeito mutante ou de um determinado genótipo ter se originado a partir da miscigenação entre portugueses e indianos4.
Existem possíveis relações com a ação de determinadas características do meio ambiente sobre genótipos mutantes suscetíveis. A mutação foi identificada em 1994 e decorre da expansão instável do triplete CAG, localizado no gen ataxina 3 ou MJD1, no cromossoma 14 (14q24.3-q31)13,14. Contínuas pesquisas revelam-nos sugestões de diagnóstico, por meio de exames clínicos e complementares15,16. Entretanto, o diagnóstico final é necessariamente realizado pelo teste genético.
Uma linha particular de pesquisa considera a DMJ uma doença poliglutamínica, ou seja, apresenta-se com uma região glutamínica expandida devido à mutação. A expressão do gene, uma proteína chamada de ataxina-3, de função até o momento desconhecida, está presente no núcleo e citoplasma dos neurônios e talvez em todos os tecidos do corpo.
Estudos demonstram que essa expressão expandida se agrega de maneira anormal, fibrilar, em inclusões intranucleares neuronais, com denúncia de provável envolvimento de processo inflamatório na patogênese desta doença1,13.
As ACAD têm em comum, basicamente, as manifestações de ataxia progressiva, deterioração no equilíbrio e coordenação, além de distúrbios oculares5-7,17. Foram identificados, até o presente momento, cinco fenótipos diferentes relacionados à DMJ18, classificados segundo determinados sinais e sintomas.
Vale ressaltar que várias áreas do sistema nervoso podem ser comprometidas pela doença como, por exemplo, a ponta anterior da medula, os núcleos da base, e o sistema nervoso periférico5,6,8,17,19,20. Distúrbios cognitivos vêm sendo relatados tendo como uma possível razão o envolvimento geral de neurônios do córtex cerebral no processo de degeneração neural9.
Não há até o momento nenhuma droga que tenha sido aprovada para o tratamento da DMJ. Porém, intervenções sintomáticas e reabilitação física podem atenuar as manifestações apresentadas pelos portadores,melhorando consequentemente a qualidade dos movimentos voluntários21,22. Em doenças que apresentam sinais de degeneração cerebelar, certas estratégias de tratamento são utilizadas com sucesso visando a esses objetivos23-29. Não obstante, faltam estudos em indivíduos com DMJ. Este trabalho tem como objetivo propor uma estratégia fisioterapêutica específica por meio da utilização dos movimentos oculares, com o objetivo de amenizar as deficiências provenientes do comprometimento da função motora nesses indivíduos.
MÉTODO
Neste estudo de atualização da literatura, foram realizadas buscas nas bases de dados Bireme, SciELO e Pubmed, com as seguintes palavras-chave: ‘Doença de Machado Joseph’, ‘Machado-Joseph’,‘ataxia espinocerebelar’, ‘ataxia espinocerebelar tipo 3’, ‘sca3’, ‘reabilitação’, ‘recuperação’, ‘ataxia’, ‘marcha’,‘terapia física’, ‘cerebelo’, ‘olho’, ‘movimento’, em português, inglês, francês e espanhol. Os artigos relacionados são do período compreendido entre os anos 2000 e 2006, salvo algumas exceções.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A ataxia cerebelar evidencia-se pelo conjunto dos seguintes sinais observados num indivíduo: dissinergia, disdiadococinesia, dismetria e tremor ao movimento30. As alterações na marcha do indivíduo são caracterizadas por aumento da base de suporte, coordenação multiarticular prejudicada e decomposição de movimentos31. Essa alteração na marcha é considerada como o marco de início da DMJ, sendo relatada na maioria dos casos e apresenta uma associação linear com a duração da doença32.
Outros sinais relevantes que aparecem em indivíduos portadores de DMJ são as alterações nos movimentos oculares. Além da oftalmoplegia e do nistagmo, alterações nos movimentos sacádicos e no movimento de perseguição lenta são muito freqüentes5-7. Há sugestão de que uma alteração no reflexovestíbulo-ocular pode ser um marcador de diagnóstico para DMJ. Sugere-se que há possibilidade que os sinais, tidos como cerebelares, na marcha do indivíduo, ocorram inicialmente devido à degeneração de áreas do sistema vestibular situados no tronco encefálico2.
Estudos proporcionam que os movimentos ocularese o reflexo vestíbulo-ocular estão relacionados com o funcionamento adequado e integrado de neurônios de núcleos do tronco cerebral e cerebelo33-35.
Exames complementares vêm sendo empregados em indivíduos portadores de DMJ para apontar as regiões do sistema nervoso central (SNC) que apresentam alguma alteração, tanto de caráter estrutural como funcional. Em áreas ainda preservadas são encontrados neurônios com corpos de inclusão intranucleares possivelmente prejudicando o seu funcionamento. Porém algumas estruturas do SNC apresentam áreas totalmente despovoadas de neurônios, caracterizando uma intensa degeneração celular.
Análises histopatológicas realizadas no tronco cerebral revelam intensa neurodegeneração em núcleos relacionados ao movimento sacádico horizontal e vertical dos olhos, ao movimento ocular de perseguição lenta, ao equilíbrio e postura, ao nistagmo optocinético, ao reflexo vestíbulo-ocular e à sustentação horizontal do olhar, além dos núcleos dos nervos cranianos oculomotor e abducente. Os poucos neurônios poupados apresentam corpos de inclusão intranucleares imunopositivas a ataxina-336-39. Evidências de investigações imuno-histoquímicas em cérebros de indivíduos portadores de DMJ com sintomas de demência e delírio mostram uma coloração anormal por um anticorpo antipoliglutamínico nos neurônios de núcleos pontinos, formação reticular, lócus ceruleus e núcleo dentado, além de outras áreas do SNC40.
Exames de PET realizados em indivíduos geneticamente positivos para a mutação de DMJ, porém assintomáticos, mostram uma sensível diminuição de perfusão nos hemisférios cerebelares e tronco cerebral, além de outras áreas. Exames de SPECT cerebral identificaram maiores alterações funcionais em hemisférios cerebelares e outras áreas do sistema nervoso central. Imagens por ressonância magnética identificaram um número de anormalidades estruturais na ponte, atrofia nas olivas, assim como uma acentuada redução de volume cerebelar15. Percebeu-se também uma redução significativa do comprimento do pedúnculo cerebelar superior (relacionado com o diâmetro dos núcleos dentado e rubro), diminuição dos diâmetros transverso e antero-posterior da ponte16.
A proposta de tratamento de ataxia cerebelar na marcha de indivíduos portadores de DMJ, utilizando os movimentos oculares, se fundamenta em algumas possibilidades e segue um modelo estruturado em etapas para a resolução da problemática:
1– existência de programas de reabilitação funcional por meio de exercícios/atividades específicas;
2– substrato teórico para fundamentação da proposta;
3– confirmação da hipótese teórica por estudos específicos;
4– integração neuroanatômica e neurofuncional entre os movimentos oculares e áreas relacionadas à marcha no SNC;
5– recuperação funcional de áreas prejudicadas do SNC pela utilização de movimentos oculares.
Inúmeros estudos de reabilitação motora vêm sendo realizados em indivíduos que apresentam ataxia cerebelar. Um programa de exercícios físicos aplicado em pacientes com ataxia espinocerebelar tipo 2 provocou uma melhora substancial da efetividade ao comparar-se os resultados das provas propostas antes e após o treinamento de marcha, sendo que os melhores resultados foram obtidos quando realizados com os olhos abertos. Os pacientes apresentaram melhores resultados nos indicadores neurológicos quantitativos utilizados, como o teste de Romberg sensibilizado e a manobra dedo indicador–alvo41.
Um paciente com degeneração cerebelar paraneoplásica, ao ser submetido a 3 semanas de reabilitação motora, exibiu um aumento na mobilidade funcional e melhora nos padrões de marcha27. Indivíduos com acometimento cerebelar pela esclerose múltipla apresentaram uma melhora da coordenação motora e desempenho em determinadas atividades da vida diária28.
A reabilitação da marcha em indivíduo com a doença de Charcot-Marie-Tooth (CMT), associada com características de alterações de neurônio motor superior, cerebelares e cegueira, apresentou uma melhora no equilíbrio e na deambulação independente29.
Um programa baseado em exercícios de adequação postural e treinamento de habilidades funcionais com os membros superiores de indivíduos atáxicos, devido a acidentes vasculares cerebrais no tronco cerebral, facilitou os movimentos de preensão e promoveu um controle da velocidade dos movimentos quando iniciada a tarefa42.
O conceito mais utilizado para fundamentar teoricamente os ganhos funcionais em indivíduos que possuem uma alteração no SNC é a plasticidade neuronal. Considerada como uma propriedade intrínseca do cérebro humano, ela representa uma evolução que possibilita a adaptação do sistema nervoso às pressões ambientais, mudanças fisiológicas e experiências43. Em suas pesquisas, buscando compreender a organização do comportamento, Hebb sugeriu a hipótese de que quando há o disparo de um neurônio A e ocorre também o disparo de um outro neurônio B, a integração entre os dois é reforçada com a freqüência dos disparos, surgindo alterações estruturais nos mesmos que facilitariam estaintegração44. Há indícios de que esses mecanismossão facilitados através de programas de exercícios físicos.
A quantidade e a qualidade desses programas são ainda objeto de estudo; no entanto, a prática intensa, quando realizada no momento correto, é um fator primordial45,46.
São vários os estudos que confirmam a plasticidade do sistema nervoso. Em modelos animais, o exercício diário ou em dias alternados aumentou a expressão da molécula de BDNF (Brain-Derived Neurotrofic Factor) ligada à plasticidade neuronal, nas áreas do hipocampo, sendo que os níveis aumentaram progressivamente com uma duração maior de exercícios, mesmo após três meses de prática diária.
Sugere-se que a atividade física ou exercícios específicos tem a capacidade de imprimir uma memória molecular para a indução de BDNF47.
Numa investigação de mudanças de excitabilidade corticoespinhal induzidas em indivíduos saudáveis utilizando-se o treinamento de força ou aprendizado de habilidades visuomotoras, uma relação significante entre os parâmetros neurofisiológicos e de performance motora foi observada no aprendizado das habilidades, mas não no treinamento de força.
Um aumento de excitabilidade corticoespinhal pode se desenvolver por várias semanas de treinamento de habilidade, sendo estas mudanças importantes para a aquisição de tarefas48. Estudos verificaram adaptações morfológicas e fisiológicas no sistema nervoso central de ratos e de primatas (macacos) induzidas por diversos fatores, dentre elas a prática associada ao aprendizado. Sugeriu-se que a organização e inerente adaptabilidade das estruturas anatômicas com suas múltiplas conexões sinápticas distribuídas pelo SNC oferecem um substrato flexível para estratégias de tratamento que guiam a plasticidade atividadedependente45.
O cerebelo recebe aferências de estruturas visuais, auditivas, vestibulares e somatossensoriais do tronco cerebral. Capta também informações oriundas
de receptores somatossensoriais dos membros e de áreas motoras, pré-motoras e pré-frontais do córtex cerebral. Suas informações são enviadas através de projeções para o tronco cerebral e regiões corticais motoras, pré-motoras e pré-frontais49-51. Os movimentos extra-oculares de cada olho são realizados por 6 músculos que são inervados por 3 nervos oculomotores, todos eles situados no tronco cerebral, em núcleos que recebem informações tanto do córtex motor como de núcleos vestibulares situados no próprio tronco cerebral35,52. Considera-se que funcionalmente o cerebelo esteja dividido em três regiões. A zona medial (vérmis e núcleo fastigial) responsável pelo controle da postura, equilíbrio e locomoção; a zona intermediária (hemisfério intermediário e núcleo interpósito) responsável pelo controle de movimentos e reflexos discretos ipsilaterais dos membros; e a zona lateral (hemisfério lateral e núcleo dentado) responsável pelo planejamento motor e pelos complexos movimentos dos membros guiados visualmente.
Pode também auxiliar no controle da locomoção, principalmente quando há necessidade de ajustes a um ambiente novo e/ou um auxílio visual forte para guiar a movimentação49-51.
Vários movimentos oculares são realizados por regiões específicas do cerebelo. Os movimentos sacádicos, que são movimentos voluntários rápidos dos olhos, movendo-os de um alvo visual para outro, ou reflexos em resposta a um alvo visual que surge com intensidade no campo visual periférico, estão relacionados às três áreas cerebelares. O movimento de perseguição lenta, que tem como objetivo reduzir o deslizamento da imagem visual sobre a fóvea em velocidades que são lentas demais para permitir uma visão clara, possui as regiões medial e flocular do cerebelo como responsáveis. O movimento de convergência, que permite romper o paralelismo horizontal dos olhos para os alvos visuais vistos de perto, tem como responsáveis as regiões medial e intermédia do cerebelo33-35,53.
As interconexões fortemente recursivas e recíprocas entre o cerebelo e o tronco cerebral podem ser avaliadas quando estudamos o reflexo vestíbulo ocular. Tal reflexo é mediado por um arco composto de três neurônios conectando aferentes vestibulares primários originários dos labirintos vestibulares, que captam os movimentos da cabeça, reportando-os ao sistema vestibular central no tronco encefálico, orientando motoneurônios de músculos extra-oculares realizarem um movimento reflexo ocular igual, porém diretamente em oposição, que possibilite manter o alinhamento da fóvea da retina no alvo visual.
Este reflexo inclui também conexões com as regiões medial e intermédia do cerebelo, sendo considerado um dos modelos neurais mais bem conhecidos para o estudo da plasticidade cerebelar33-35.
Apesar de os movimentos oculares serem um objeto de estudo largamente pesquisado, e a recuperação funcional de áreas prejudicadas do SNC também dispor de vasta literatura nas bases de dados pesquisadas, são poucos os estudos relacionados à utilização de programas de exercícios enfocando os movimentos dos olhos.
Cohen et al., por exemplo, realizaram um estudo envolvendo a reabilitação motora de 53 indivíduos com vertigem devido a vestibulopatia crônica e que também apresentavam sinais de ataxia na marcha devido ao prejuízo vestibular54. Foi utilizado um programa de exercícios domiciliares baseado em movimentos da cabeça realizados 5 vezes por dia, coma duração média de 5 a 10 minutos cada, durante 4 semanas. Houve melhora no parâmetro de tempo do Teste (Get Up And Go), na Vestibular Disorders Activities of Daily Living Scale (VADL), escala que acessa o impacto da vertigem nas habilidades funcionais e no teste de caminhada de 7,62 m com os olhos abertos, após a realização dos movimentos pré-estabelecidos.
Mudanças significativas foram também relatadas na comparação de análises posturográficas antes e depois do programa de exercícios. Sugeriu-se que a prática repetitiva de movimentos de cabeça combinados com interação visual/vestibular pode ser uma abordagem de tratamento efetivo para indivíduos que têm prejuízo vestibular periférico e ataxia, quer cerebelar, quer sensorial54.
Han et al. estabeleceram protocolos de treinamento e de teste oculomotor relacionado à leitura. Consistem em procedimentos de laboratório para acessar, testar e recuperar habilidades oculomotoras relacionadas à leitura em indivíduos com lesão cerebral adquirida que manifestam alterações oculomotoras com sintomas correlatos durante a leitura55. O protocolo de estudo consiste de 11 semanas, com um teste de follow-up depois de 3 meses após o treinamento.
O treinamento enfatiza os movimentos de fixação, perseguição, sacádicos e simulações de leitura usando tarefas oculomotoras, sendo utilizado um computador tanto para a geração de estímulos como para a análise dos resultados e técnicas para a gravação dos movimentos oculares. O treinamento é realizado num período de 36 minutos por sessão, havendo repouso entre os exercícios para prevenir a fadiga, aumentando-se o tempo de sessão para aproximadamente 60 minutos.
Um questionário de graduação de leitura (validado pelos autores) é administrado antes e depois do treinamento completo para acessar melhoras subjetivas na leitura (compreensão do material lido, estratégiade leitura etc.). Tanto os resultados objetivos (fixação, movimento sacádico, perseguição) como os subjetivos revelam melhoras significativas. Na avaliação 3 meses depois do treinamento apresenta-se manutenção das melhoras obtidas em praticamente todos os parâmetros.
Sugere-se que esses protocolos possam ser também úteis em grupos de indivíduos com prevalência de alterações oculomotoras, tais como degeneração macular, prejuízo na leitura, nistagmo, estrabismo e ambliopia55. Outros estudos de casos são apresentados por Kapoor et al56.
Crowdy et al. apontam que uma maneira viável de melhorar o desempenho locomotor de indivíduos portadores de alterações cerebelares pode estar relacionada à realização de movimentos oculares realizados, praticados ou mesmo ensaiados53. Indivíduos com degeneração cerebelar primária autossômica dominante submeteram-se a um protocolo experimental que constava de caminhar sobre um circuito de 18 pedras irregularmente dispostas. Os indivíduos deveriam efetuar as passadas, fazendo um ensaio de movimentos sacádicos ao longo daspedras antes de iniciar uma caminhada. Os movimentos oculares e as passadas foram monitorados.
Os indivíduos realizaram menos movimentos oculares multi-sacádicos e mais movimentos sacádicos únicos e precisos quando fixaram um alvo ao longo do circuito, após o ensaio. Houve também uma melhora nas passadas visualmente guiadas, onde ambos apresentaram uma redução na variação em todas as fases do ciclo da passada. Após a conclusão de que o ensaio de movimentos oculares promove uma melhora na performance locomotora, postula-se a existência de uma ligação comportamental importante do controle oculomotor na locomoção em indivíduos saudáveis durante a passada guiada visualmente. É possível que no planejamento de uma determinada passada o centro de controle locomotor seja informado instantaneamente pelo sistema oculomotor, no momento do planejamento e geração de um movimento sacádico na direção da passada correspondente53.
Kawahira et al. examinaram os efeitos dos exercícios de facilitação envolvendo o reflexo vestíbulo-ocular em indivíduos portadores de oftalmoplegia por dano cerebral57. Presumiu-se que a sincronia de dois movimentos, um voluntário e outro reflexo, poderia induzir um movimento ocular para além doslimites impostos pela alteração neural. Oito pacientes com diplopia e estrabismo participaram do estudo.
Todos apresentavam sinais de ataxia e a maioria, alterações na locomoção. O tratamento foi realizado repetindo-se um exercício passivo de cabeça 10 vezes por minuto por 10 minutos (100 vezes por dia), durante 4 semanas, para cada músculo afetado pela oftalmoplegia. Apesar de não terem fundamentado teoricamente os resultados, os pesquisadores sugeriram que os exercícios de facilitação promoveram melhora nos sinais e sintomas de oftalmoplegia57.
Uma proposta de tratamento à base de atividades específicas foi realizada em crianças de uma escola na Inglaterra com dificuldades de leitura, para melhorar os sintomas de dislexia. Partindo de uma hipótese de que o cerebelo tem uma participação fundamental nos processos de aprendizado de habilidades (incluindo articulação verbal), fluência e automaticidade, além da linguagem e leitura58, Reynoldset al.59 utilizaram uma seqüência de exercícios físicos desenvolvida por um grupo de pesquisadores conhecido por Balance Remediation Exercice Training Program, também conhecido como exercícios DDAT.
Consiste em grupos de exercícios ajustados de maneira a evitar a acomodação, a hiperestimulação e automatização, sendo considerado um programa complexo de estimulação sensorial integrada incorporando uma terapia visuomotora e vestibular. Além de exercícios de equilíbrio, coordenação e alongamento, a proposta incluiu uma atividade específica de jogar de uma mão para a outra um determinado objeto que deve ser cuidadosamente acompanhadopelos olhos. Após 6 meses de treinamento realizado diariamente por dez minutos, os resultados apontaram para uma melhora significativa na performance vestíbulo-cerebelar e nos movimentos oculares. Além de o tratamento DDAT ter produzido benefícios diretos ao equilíbrio, destreza e controle ocular, houve também melhora em habilidades cognitivas como em determinados aspectos da fluência – nomeação rápida, fluência verbal e semântica – e ao processo de leitura. Sugere-se que esse tratamento é efetivo não somente para melhora direta da função cerebelar, mas também tem um papel, ainda controverso, de melhora de habilidades cognitivas e performance literária59.
Proposta de Tratamento
Estabeleceu-se um primeiro grupo de exercícios que visam primeiramente promover movimentos simples em certas direções e sentidos (superior, inferior; adução, abdução; adução/superior, adução/ inferior; abdução/superior, abdução/inferior).
Um segundo grupo de exercícios conjuga o movimento de cabeça ao posicionamento do olho. Há a fixação do olhar num ponto à frente dos olhos e movimento da cabeça em certas direções e sentidos (rotação à direita e à esquerda, à flexão e à extensão).
Um terceiro grupo é composto de exercícios que são feitos pelo olho e pelo membro superior em perfeita coordenação, assim como pelo olho e pelo membro inferior. Um último grupo de exercícios conjuga o movimento de olhos e de membros durante uma determinada função como a apreensão de um objeto ou, principalmente, a deambulação. Estes podem ser aplicados inicialmente de forma segmentar e evoluir para serem realizados de forma mais global, ou seja, integrando todos ou partes dos segmentos. O nível de dificuldade também pode variar, podendo ser realizado em área totalmente plana, com certas irregularidades, sobre marcações no solo ou subindo uma escada. Entre cada exercício proposto e realizado há uma pausa para o relaxamento de 30 segundos,onde é colocada uma viseira de maneira a bloquear a entrada de luz no olho. Nesse momento, o indivíduo deve manter os seus olhos fechados, sem tensão e sem nenhum movimento, procurando manter-se atento à própria respiração. Um princípio fundamental no programa de exercícios físicos para a ativação de cerebelo e das vias cerebelares parece ser o de evitar uma habituação, uma acomodação do movimento.
Estabelecer um modo de operação de forma a modificar randomicamente parâmetros como velocidade, direção, sentido, ritmo do movimento de maneira que, durante todo o momento, se mantenha uma necessidade de “estar em fase de aprendizado e de sua expressão”. Nos exercícios oculares exemplificados isso poderia ser realizado principalmente na fase de coordenação olho-membro superior e olho/membro inferior.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo de nosso estudo é propor uma estratégia fisioterapêutica específica através da utilização dos movimentos oculares, para amenizar as deficiências provenientes do comprometimento da função motora nesses indivíduos. Há que ser considerado o estudo de Rüb et al., indicando o envolvimento de intensa degeneração neuronal no tálamo de indivíduos portadores de DMJ60. Esses novos achados enfraquecem a suposição de que o tálamo era uma área não afetada, sendo então usado como referência nos estudos de imagem funcional15. Possui também uma relevância clínica, pois alguns dos sinais e sintomas relacionados com a DMJ, tais como ataxia na marcha, postura, tronco e membros, disartria ou anartria, quedas, disdiadocosinesia e bradicinesia, problemas com a escrita, diminuição somatossensorial, disfunções sacádicas, disfunções executivas e anormalidades de potenciais evocados visuais podem ser explicados também pelas alterações no tálamo60. Em outro estudo, evidenciou-se uma perda neuronal intensa no núcleo cuneiforme externo de cinco indivíduos portadores de DMJ que apresentavam ataxia em parte superior de tronco e em membros. Como este núcleo tem um papel importante no processamento de entrada de informações proprioceptivas de parte superior de tronco e de membros superiores, sugere-se que há um componente proprioceptivo nos sinais e sintomas de ataxia, sendo esta não somente cerebelar, mas também possivelmente proprioceptiva61.
Alguns estudos sugerem que o programa de exercícios físicos proposto tem possibilidade de gerar resultados satisfatórios, principalmente quando os princípios de “estar em fase de aprendizado e de sua expressão” e de “atenção mantida” durante o movimento norteiam a prática. Há ativação cerebelar maior em movimentos que utilizam uma coordenação olho/mão do que quando realizada isoladamente.
Em tarefas onde uma assincronia temporal era introduzida, o cerebelo foi o único órgão do sistema nervoso central que variou sua atividade utilizando-se movimentos de coordenação olho/mão62. Há evidências de que o cerebelo, durante o aprendizado motor implícito, parece participar mais na formação de estruturas preditivas para o timing de respostas motoras do que na precisão de uma execução motora63.
Inúmeras pesquisas sugerem que o cerebelo contribui para o aprendizado de uma habilidade motora e também quando há mudança de performance.
Num estudo que utilizou um procedimento de teste no qual essa dissociação ocorre, os resultados obtidos não apresentaram ativação cerebelar na fase de aprendizado motor. Entretanto, uma ativação cerebelar importante ocorreu durante a fase de expressão do aprendizado, ou seja, na mudança de performance. Há indícios, portanto, de que durante a aquisição de uma habilidade motora o cerebelo não contribui para o aprendizado seqüencial, mas sim para a sua expressão64.
Uma técnica de cinesioterapia que enfatizava o treinamento repetitivo de tarefas relevantes, com significado funcional, apresentou um aumento de perfusão significativa nos hemisférios cerebelares e áreas do SNC relacionadas ao planejamento e à execução motora65. O córtex motor, o cerebelo e os núcleos da base parecem estar envolvidos no controle voluntário da postura e no aprendizado de diferentes tarefas posturais, onde o córtex motor relaciona-se principalmente ao aprendizado mais específico, os núcleos da base com uma estratégia mais global de controle, e o cerebelo estando envolvido em ambos os aspectos26.
Malgrado ser bem reconhecida e conceituada semiologicamente, a ataxia tem seu mecanismo causal ainda pouco conhecido. Alguns estudos apontam a possibilidade de que o cerebelo perderia a capacidade de coordenar a atividade relativa de vários músculos e ajustar o movimento numa determinada articulação por causa dos efeitos de outras articulações que estão se movimentando (torque interativo). 66. Os resultados da estabilização de uma determinada articulação (ombro) num movimento que utiliza várias articulações (ombro e cotovelo) apresentam uma melhora funcional quando comparada com os resultados obtidos ao deixar a articulação (ombro) movimentar-se livremente no mesmo movimento67. Sugere-se que os sinais de ataxia cerebelar possam ser tratados e melhorados ao ensinaro indivíduo a realizar movimentos mais lentamente e limitados a uma única articulação, evitando os movimentos multiarticulares e rápidos66.
Apesar de não ser bem conhecido como o cerebelo contribui para a marcha, sugere-se que ele participa na geração de padrões adequados de movimentos dos membros, na regulação dinâmica de equilíbrio e na adaptação de postura e locomoção através de treinamento68. Áreas diferentes do cerebelo controlam a postura adequada e a marcha de maneiras diferentes. Assim, lesões localizadas em áreas diferentes do cerebelo causam deficiências diferentes69. Morton et al. Realizaram um estudo investigando a contribuição relativa da deficiência de coordenação voluntária do membro inferior e do equilíbrio na marcha atáxica de indivíduos com lesão cerebelar, dentre eles um portador de DMJ31. Os resultados apontaram que a deficiência de equilíbrio é um indicador mais forte de ataxia cerebelar durante o caminhar em plano nivelado do que a deficiência de colocação correta do membro inferior guiada visualmente. Sugerem que isso está em acordo com o local de lesão cerebelar e com as características funcionais correspondentes31.
Os exames complementares funcionais e de imagem do SNC apresentam achados de baixa perfusão e presença de neurônios não funcionais em hemisférios cerebelares, diminuição de volume cerebelar e do vermis e diminuição de núcleo denteado.
As alterações visuais não apontam necessariamente para uma lesão específica numa área do cerebelo, porém elas sugerem uma deficiência no controle do movimento dos membros inferiores. Holland et al. sugerem que o sistema de controle oculomotor e o sistema de controle de passada operam de maneira interativa e coordenada70.
Será que a neuroplasticidade pode se expressar de forma efetiva entre a áreas funcionalmente distintas do cerebelo? Será que um neurônio de uma área, que parece estar envolvido em funções determinadas, pode assumir funções de neurônios de áreas vizinhas? Algo semelhante já aconteceu anteriormente quando do mapeamento do homúnculo de Penfield, já que os resultados de novos estudos sugerem existir uma divisão bem mais flexível71. Espera-se que novas pesquisas e tecnologias capazes de registrar essas possibilidades sejam desenvolvidas no futuro e possam esclarecer e nos oferecer um maior conhecimento do funcionamento do cerebelo e do seu papel no sistema nervoso central.
Parece existir, então, a necessidade de se abordar a recuperação funcional de indivíduos com ataxia cerebelar com propostas terapêuticas que possuam ênfases diferentes (coordenação de membro inferior, equilíbrio e ambos). Um programa de exercícios que estimule os neurônios cerebelares a partir de aferências distintas pode propiciar uma indução mais efetiva e eficaz de mecanismos relacionados à plasticidade neuronal, possibilitando uma recuperação funcional. O programa de exercícios, portanto, utilizando os movimentos oculares propostos, sugere ser uma estratégia simples estimuladora de todas as partes do cerebelo, assim como algumas mais especificamente, podendo reintegrar e funcionalizar áreas do tronco cerebral e cerebelo responsáveis pela ataxia cerebelar dos indivíduos portadores de DMJ.
Poderá apresentar resultados significativos, estando adequadamente fundamentada nos mais recentes modelos teóricos neurofuncionais.



Fonte: http://www.abahe.org.br/artigo/artigo_inteligente.php?uid=169

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